domingo, dezembro 16, 2007

“Rato a rato, enche o gato o papo”, dizia-lhe a Avó Nina, já desesperada. Max ouvia-a e baixava os bigodes em sinal de respeito. Sabia que toda a sua família, irmãos, primos, tios, cunhadas e padrinhos faziam parte dessa grande estirpe felina de caçadores exímios de ratos. Mas ele não percebia porque é que também tinha que ser assim… Havia algum contrato assinado à nascença que o obrigava a perseguir indefesos ratinhos, sempre muito mais pequenos do que ele e que ficavam apavorados só de o ver chegar? Não havia, com certeza. Até porque, bem vistas as coisas, ele nem sequer sabia escrever… como poderia ter assinado fosse o que fosse??
Enquanto pensava nestas coisas, ia acenando com a cabeça, para a Avó achar que ele estava com muita atenção…ele já sabia o discurso todo: que os gatos sempre caçaram ratos; que os ratos já sabem que é esse o seu destino; que caçar estimula os sentidos felinos; que por serem os caçadores da Quinta é que a Dona da Casa lhes dava abrigo e miau, miau, miau, miau…..
Findo o rosário de queixas, choros e miados que terminavam sempre com “Mas porque é que tinhas que nascer diferente dos outros gatos todos?”, a avó Nina voltava para a cozinha, abanando a cabeça e a cauda....
Max aproveitava a folga e corria em direcção ao terraço do lagar. Do que ele gostava mesmo era de estar assim, deitado de barriga para o ar e ronronando ao Sol. Para quê perder tempo a perseguir ratos, ratinhos e ratazanas sabendo que bastava olhar para eles e fazer uma careta que todos fugiam num ápice?
Talvez por não querer ser caçador como todos os outros gatos da Casa, Max passava grandes temporadas sozinho. Preguiçando, lambendo o pelo alaranjado, alisando os bigodes, trepando às arvores para espreitar o mundo para lá da Quinta… tudo isto, Max adorava fazer. E queria que os outros gatos também o fizessem mas pelos vistos, andavam todos demasiadamente ocupados a caçar. E quando passavam por ele, lançavam-lhe uns olhares esquisitos. entre dentes comentavam que Max era um gato muito raro, porque não queria caçar mas que de gatos raros não reza a história e que, mais cedo ou mais tarde, ele ia aperceber-se de que estava errado, porque se todos caçavam, ele também tinha que o fazer e miau, miau, miau… Max fingia que não percebia. Mas ficava triste por saber que a sua família o encarava desta forma. E que o achavam esquisito e raro. Mas porque razão era raro um gato de Quinta não-caçador? Haveria assim tanto rato espalhado pela Casa que fosse necessário um batalhão felino sempre a postos? Max achava que não. Que era tudo um perfeito disparate e que os gatos poderiam fazer muitas outras coisas para além do que estava estabelecido. Tendo reflectido sobre o assunto, rebolou-se um pouco para apanhar Sol nas costas.

Max sentia-se só; apesar de ser bastante independente como todos os gatos, sentia falta de um mimo, precisava de um gato amigo com quem pudesse falar e brincar e a quem pudesse lamber as orelhas. Mas nenhum dos gatos da Casa queria fazer isso com ele. Porque Max era um gato diferente, todos decidiram tratá-lo de forma distinta: para as grandes assembleias felinas, ele nunca era convocado; para as festas de aniversário, jamais recebia convite; as grandes tardes de domingo à volta do pomar, com jogos, corridas e saltos eram passadas sem ele- se ele não caçava, certamente não conseguiria sequer dar um pulo sem se magoar.
E ele assistia a tudo, do alto de um velho carvalho ao lado do palheiro. Era a arvore mais alta e por isso a preferida de Max. Era o melhor lugar para ver sem ser visto.
O tempo foi passando e Max resignou-se. Ainda tentou caçar um ou outro rato mas, sempre que os via, apetecia-lhe pôr-se à conversa com eles já que não tinha mais nenhum animal com quem falar… mas os ratos desconfiavam de todos os gatos e fugiam a 7 patas.
Numa tarde de Primavera, Max, no alto do velho carvalho, reparou que os portões da Quinta se abriam para deixar entrar um automóvel. Lá dentro, para além dos Donos da Casa, vinha outra pessoa. Uma Menina. Era bastante pequena. Media metade da porta de Casa. A curiosidade é um dos grandes defeitos dos gatos; Max podia não ser caçador mas era curioso…por isso, apercebendo-se de que a Menina ia dormir no Quarto com a janela que dá para o lagar, foi-se logo pôr a espreitar. Viu-a a pousar uma boneca em cima da cama e a abrir algumas gavetas e armários. A seguir, e com a certeza de que ninguém a estava a ver, a Menina pulou cinco vezes em cima da cama, afundando-se depois no meio de almofadas macias e rindo deste pequeno disparate que normalmente os Adultos condenam…Max também se riu. Mas se calhar riu-se para fora ou então a Menina viu uma mancha laranja a mexer-se no lado de fora da janela. De repente os olhares dos dois cruzaram-se. “Um gato!” exclamou a Menina! “Oh-Oh!” pensou o gato. E fugiu de novo para o topo da arvore. A Menina veio a correr cá para fora mas já não conseguiu perceber para onde tinha ido o gato.. foi ter com a Dona da Casa e disse: “Tia, onde é que costuma estar o Gato?” “Carolina, a Quinta tem muitos gatos. Mas não te ponhas a brincar com eles, não são nada meigos, só servem para caçar ratos e comer ração.”
Max aprendeu duas coisas: a Menina é Sobrinha da Dona da Casa e chama-se Carolina. Mas também percebeu porque é que os Humanos não simpatizam muito com Gatos e os Gatos todos da família não dão muita importância aos Humanos.
À noite, Carolina ainda espreitou a janela antes de correr as cortinas mas não viu o Gato. Nenhum Gato.
Na manhã seguinte, logo a seguir ao pequeno almoço, Carolina aproveitou uma ideia da Tia: “ Vai dar uma volta pela Quinta, tens muito que explorar…”
Durante um bom par de horas teve tempo de passear pelo Pomar, pelo Palheiro, ver as alfaces e as cenouras; dar milho às galinhas e ajudar o Senhor que Trata dos Cavalos a dar umas maçãs bravo-esmolfe ao Luso, o maior cavalo da Quinta. Enquanto roía também uma daquelas belas maçãs, pensava “O que será feito do gato?” aliás estava até intrigada por, ao longo daquele passeio não ter visto nem um único gato e a Tia tinha-lhe dito que havia imensos… “Isso é porque os gatos dormem de dia… à noite, andam por aí, aos ratos…” respondeu o Tio à Carolina que afinal estava a pensar em voz alta. “Gostava tanto de brincar com um…” confessou-lhe a sobrinha. “Isso vai ser difícil”, replicou o Tio, “Eles são muito senhores do seu nariz e só servem para caçar… se bem que ouvi dizer que há um meio alaranjado que nunca foi visto a fazer nada, a não ser estender-se ao Sol… pode ser que tenhas sorte com esse!” disse o Tio, rindo da possibilidade de um Gato brincar com um Humano.
Carolina estava decidida a encontrar o gato laranja. Porque razão o Tio teria rido? Na Casa onde vivia, na Cidade, Carolina tinha 2 gatos que brincavam imenso com ela, não havia nada de mais nessa situação. Depois do almoço seria uma boa hora para o encontrar. Todos os gatos gostam de dormir a sesta. Bem, todos os gatos gostam de dormir. Ponto final. A hora a que o fazem é totalmente indiferente. Mas baseada na experiência do Luca e da Bianca, os seus gatinhos de estimação, Carolina já sabia algumas coisas sobre estes bichanos. Só não sabia se os Gatos do Campo se comportariam de forma diferente….Ao pensar num deles a caçar um rato e a transportá-lo na boca pendurado pela cauda, ficou um bocado enjoada…. Mas tinha a certeza de que o seu futuro amigo laranja era o tal gato que nunca tinha caçado um rato! E decidiu descobrir esse gato.
Ao fim do dia, cansada de subir e descer os carreiros da Quinta, de espreitar todos os cantos, de bisbilhotar todos os possíveis esconderijos, Carolina exclamou: “Será que os Gatos do Campo são invisíveis durante o dia?” “Não… tu é que não estás a procurar nos sítios certos” disse Max, empoleirado no seu carvalho.
- Gato laranja… encontrei-te. Aliás, encontraste-me!
- Chamo-me Max. E tu és a Carolina.
- Sim. Andava à tua procura desde ontem. Porque é que fugiste?
- Tinha que fugir, estamos preparados para fugir perante o perigo.
- Eu sou um perigo? – disse Carolina , sem controlar o riso…
- Bem, és humana. E se eu não sirvo para caçar os ratos que te incomodam, então, não sirvo para mais nada; por isso não deves querer-me por perto…
- Oh Max, os gatos não servem só para caçar ratos; quem te disse isso?
- A minha Avó. E a minha Mãe. E o meu Tio, Pai, Avô… bem todos! Todos sabem que nós, gatos, se não caçamos ratos somos inúteis!! E eu sou um inútil. Não sirvo para nada.
- Não digas isso. Tenho 2 gatos em casa que nunca caçaram ratos. E são muito válidos!
- Espera lá, tens gatos… em Casa? Dentro de casa?
- Sim, claro. São de estimação. Adoro-os. Brinco imenso com eles.
Para Max, aquela conversa era a confirmação de toda a sua existência. Afinal, ERA POSSIVEL ser um gato não caçador! Havia outros exemplos, outros gatos que não caçavam. Max estava capaz de saltar para o colo de Carolina e ronronar duas horas seguidas!
- Carolina, Carolina, vem jantar. Gritou a Tia, do interior da Casa.
- Max, tenho que ir. Amanhã queres passear comigo? Encontro marcado aqui às 10 da manhã!
O dia seguinte foi maravilhoso. Carolina contou ao gato tudo aquilo que sabia sobre os gatos que viviam na cidade; Max por sua vez, ensinou-lhe muito sobre a vida numa Quinta: a importância de expulsar os roedores para que não haja doenças nem se estraguem as sementes, por exemplo. Mas também lhe contou do quanto se sentia triste por não ser nunca convidado para nada do que os outros gatos planeavam.
Carolina estava tão feliz por ter mais um amigo gato que praticamente se esquecera de que ficava na Quinta só durante as férias de Páscoa e que no Domingo seguinte já era tempo de regressar. Assim, na véspera, teve que dar a noticia ao bichano laranja. Max ficou desolado. A sua única amiga ia partir. E ele voltaria a ser um gato esquisito no meio da Quinta. Ela prometeu voltar todas as férias. Ele, escondendo com a pata uma lágrima teimosa, saltou-lhe para o colo. Despediram-se ali mesmo, para evitar um adeus no dia seguinte.
Max trepou para o alto do velho carvalho, decidido a nunca mais descer.
Nessa noite, Max não conseguiu pregar olho. Só pensava no vazio que iria ser a sua vida até às próximas férias escolares. Se ao menos tivesse um amigo com quem desabafar estas angústias….e enquanto alisava os bigodes e suspirava, ouviu um barulho. Passava-se qualquer coisa lá em baixo. A curiosidade, como é mais forte do que tudo na vida de um gato, fê-lo descer. Viu então um enorme bolo com 5 bonitas velas! Era a noite do seu aniversário! Tinha-se esquecido completamente. Aliás, nunca ninguém – gato ou humano – tivera em conta a efeméride! Só podia ser coisa da Carolina! Como é que ela descobrira?
Um a um, os gatos da Quinta apareceram e colocaram-se à volta do bolo. A Avó Nina, foi a última a surgir e a dar um beijo repenicado no focinho de Max.
- Então e a Carolina?
- A Carolina já foi. Os Donos da Casa decidiram ir de noite, acho que por causa de uma coisa chamada “trânsito”.
- Então… esta ideia não foi dela?
- Não meu querido, foi nossa. Ao longo destes dias, cada um de nós foi ouvindo pedaços das vossas conversas, espreitando as vossas brincadeiras. E fomos percebendo que afinal, não há nada de errado em não ser igual… porque tens tu que ser caçador, se não é isso que queres ser? Entendemos que um gato não-caçador tem tanto valor quanto um que o seja. Pode fazer companhia, por exemplo. Dar amizade sem pedir nada em troca. Estar sempre por perto, pronto para uns mimos e umas brincadeiras. E isso é tão ou mais importante do que correr atrás dos ratos. Max; mostraste-nos que consegues fazer coisas maravilhosas pelos outros. Outras coisas. E essa partilha é que é verdadeiramente rara. Obrigada por nos ajudares a perceber que a vida não tem que ser uma enorme perseguição aos ratos do campo.

Num cantinho, escondidos atrás de um fardo de palha, uma família de ratos celebrava também o aniversário de Max. Pelo menos esta noite, iam poder descansar.

( conto escrito para a colectanea "Histórias Raras" )

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